Li a matéria sobre o Milson Henriques que saiu no caderno Pensar do dia 07/04/2011 de A Gazeta, me interessei ainda mais pela vida dele e, pesquisando, achei essa matéria que saiu no site da ABD Capixaba no dia 09/03/2010.
Vou postar aqui na íntegra como homenagem e por achar que a própria vida dele daria um ótimo filme:
Geração 60 e o movimento do cinema amador (por Milson Henriques)
1964. Minha vida estava tão ou mais perturbada que a vida política do Brasil. Estava com 26 anos, havia fugido da casa paterna aos 14, depois de uma infância sem televisão, e isso significa que tinha a vivência de um atual menino de nove anos. Apesar da pouca idade, já era ateu (uma das causas da fuga) e perturbado. Vivi péssima e lindamente a juventude em Copacabana, quando o Rio era uma cidade maravilhosa. Aos 22 anos, dei uma de filho pródigo para os pais que nem sabiam se eu ainda existia. Não agüentei o “lar”. Fui para Salvador, depois para Belo Horizonte, Brasília, Salvador novamente. Pintou a revolução militar… vou fugir para o Uruguai, vou descendo de ônibus até o Rio Grande do Sul, mas a grana só deu para chegar até Vitória. O jeito é trabalhar um pouco para conseguir o dinheiro da passagem e prosseguir. E estou aqui até hoje.
Todo esse intróito – ainda se usa essa palavra? – sobre a minha vida é para mostrar o caminho percorrido, sempre pela esquerda, como ia a minha cabeça e minha vivência ao chegar a essa Ilha, na época muito mais provinciana. Já era uma puta velha vivida em grandes metrópoles, sofrida, fodida, mal paga, em busca do que não sei até hoje. Triste, mas feliz.
Logicamente atraído por tudo que é gauche, me enturmei logo com a esquerda: universitários, jornalistas, artistas, intelectuais, bebuns, viciados em tudo, principalmente em cultura. Fui muito bem recebido e me senti em casa, mais feliz que um pintinho ciscando num monte de lixo – no bom sentido. O primeiro que conheci foi Osvaldo Oleari, que me apresentou a Xerxes Gusmão Neto, que me apresentou a Darly Santos (hoje rodovia), que me apresentou a Antonio Carlos Neves, que me apresentou a Cláudio Lachini, que me apresentou a Zélia Stein. E, assim, fui conhecendo aqueles jovens maravilhosos que bebiam a vida com sofreguidão, que eram respeitados intelectualmente pela cidade, mas rejeitados pelas “mães de família”. Aquela velha história – “são pessoas muito inteligentes, “et pour cause” são perigosas, “não quero meu filho andando com eles”. Logicamente passei orgulhosamente a fazer parte da “corja comunista de maconheiros, ateus, hippies, cabeludos, pederastas e etcéteras”, como éramos conhecidos pelos hilários censores da Polícia Federal…
Toninho Neves, este meu pequeno grande herói, estava com dificuldades de encontrar atores para montar uma peça que havia escrito. Teatro, naquela época, era coisa de viado. Lógico que me ofereci e fui aprovado por um Toninho meio desconfiado já que, ao mesmo tempo, eu era barítono do coral da catedral de Vitória (??? sic). Começaram os ensaios, a peça foi proibida. Outra tentativa, outra proibição… Escolha de novo texto. Proibido outra vez… Enquanto não se resolvia o impasse teatral, Toninho tentava também filmar alguns curtas.
Ele e os colegas da época que me desculpem, mas nunca imaginei um dia escrever sobre aqueles acontecimentos. Por isso, na memória deste ancião que vos escreve, aparecem flashes confusos, imprecisos, sem data certa, principalmente por conta da “marvada pinga”, da “cannabis”, além da embriagues da própria arte. Lembro que o primeiro filme que tentamos, Toninho dirigindo e eu como ator, a primeira cena seria um close no meu rosto, deitado na cama dando uma tragada e jogando fumaça direto na câmera que lentamente se afastava. Só que nunca soube fumar cigarro normal, essa droga lícita e, toda vez que tentava, era um tremendo acesso de tosse. A tentativa de filmagem foi num casarão lindo, ao lado da Igreja do Rosário. Não lembro mais nada. Nem o nome do filme. Só sei que nunca foi terminado. Outro flashe: fomos filmar Boa sorte, palhaço! Tinha uma cena em que eu descia a Rua Sete (na época, a mais badalada e chic da cidade), andando com um pé no meio fio e outro na rua, e me encontrava com a linda Zélia Stein para um abraço e beijo. Assim que começamos a montar os equipamentos, começou a juntar gente. Na hora do ensaio já existia umas 100 pessoas de olhos pregados naqueles seres estranhos, com roupas estranhas obedecendo a ordens de um garoto que gritava: “Repete! Chega mais perto dela! Volta! Devagar! Alguém retoca a maquiagem no rosto da Zélia que está brilhando! No Milson também. Ele está suando… Limpa! Vamos! Ação! Espere, uma nuvem cobriu o sol! Milson, na hora do beijo você fica com os dois pés na rua, a Zélia na calçada! Repete! Vira menos a cabeça! Agora! Espere, passou um carro! Silêncio, vamos gravar! Olha a brincadeira, alguém jogou um pedaço de papel! Peraí, assim não dá. Vamos colaborar gente!”. Mas não adiantou. Começaram a gritar piadinhas, os meninos de rua a rir e a fazer bagunça, agitação… Jogaram um pedaço de papelão na minha cabeça, até que Toninho se estressou: “Não dá para continuar assim. Vamos parar e esperar o pessoal sair”. Mas quem disse que o povo arredou o pé? Não lembro se foi também por causa da censura, ou outro imprevisto, mas o palhaço não teve boa sorte. Mas o Toninho nunca desistia. Outra tentativa… Se não me engano, o nome profético do filme era No meio do caminho.
Fomos filmar no meio da escadaria da igreja de Campinho de Santa Isabel, aquela cidadezinha pacata antes de Domingos Martins. Eu fazia um jagunço que, de rifle em punho, dava um tiro no padre, papel representado por Cláudio Lachini que, ferido, caía e rolava pela escadaria. Uma tomada difícil, porque teria de cair de maneira que não machucasse, e de forma estética. Mais uma vez, cercado de curiosos, os habitantes da cidade – quase todos ali vendo aquela loucura – sem entender direito, embora Toninho tenha tentado explicar. Vamos ao primeiro ensaio: Lachini caiu, de maneira ridícula, com medo. Além disso, a batina veio parar nas coxas. Vamos repetir… Outra queda, Lachini machucou o joelho e gritou. Pausa. Repetindo… Na queda seguinte, com medo, ele amparou o corpo com as duas mãos. Repete. Já com as mãos e joelhos ralados, caiu legal, mas um sapato saiu do pé, ficou cômico. Começamos a rir. Lachini já puto da vida, caiu outra vez, a batina veio parar literalmente na cabeça. A risada redobrou, menos a de Toninho que estava nervoso, quase explodindo, principalmente porque o rolo do filme, que era caríssimo, estava acabando. Mais uma: Lachini cai e diz um palavrão. Mais risos… Toninho uma pilha: “Agora, vamos, saia como sair! Agora vai dar certo!” Foi quando apareceu uma senhora, beatíssima gritando histericamente: “Chega de zombar de nossa igreja! Isso é uma blasfêmia! Um bando de moleques. Vieram de Vitória para fazer bagunça aqui, para rir da gente! Chega dessa palhaçada! Para despertar meu Jesus Cristinho só passando por cima do meu cadáver!” E começou a insuflar a população contra a nossa equipe apavorada. Resumindo: reunimos rapidamente tudo na Kombi, entramos de qualquer maneira e saímos em desabalada, já ouvindo o som de pedras batendo na lataria. E fomos em busca de outra cidadezinha com outra igreja, mas acabou ficando tudo no meio do caminho mesmo.
Dos filmes que fiz como ator com Toninho, finalmente conseguimos terminar Alto a la agression!. Eu fazia o papel de um estudante logicamente engajado na esquerda e tinha como namorada Silvia Renata Cohen. O Caderno B do Jornal do Brasil fazia anualmente um Festival Nacional de Curtas e, para nossa alegria e recompensa de tantos esforços, fomos semifinalistas. O movimento dos curtas-metragens aumentava cada vez mais com muitos jovens “cabeças” envolvidos. Lembro de Luis Lages, Rubens Azeredo, Ewerton Guimarães, o mais que presente Ramón Alvarado e, principalmente, Paulo Eduardo Torre (Luiz Tadeu Teixeira era muito jovem. Apareceu depois). Na época do auge da Rádio Nacional existia uma “rivalidade” entre Marlene e Emilinha Borba. Entre nossos cineastas, a rivalidade era entre Toninho e Paulo. Mas uma rivalidade sadia em que um colaborava quando o outro precisasse. Tanto que a cena do filme em que eu era torturado no “pau de arara” e levava uma porrada na cara, filmado na casa de Toninho, a mão que me batia era a de Paulo. Assim como Toninho tinha Zélia Stein, musa loura que participava da maioria de seus filmes, o Paulo tinha uma namorada também loura e magra, a bela Marlene Simonetti.
Para o jovem de hoje, parece um pouco estranho o teor dos filmes daquela época, em sua maioria de protesto e muito inspirados nos filmes noir franceses, da nouvelle vague ou do neo-realismo italiano. Nunca! Nada que lembrasse o cinema americano. Era também uma forma de protesto, seja na música, no teatro, em qualquer manifestação artística. Vivíamos em plena ditadura militar e filme era coisa muito cara. O sujeito tinha que ser muito pirado, muito louco para se meter nessa que, além de ser perigosa, politicamente era uma empreitada sem futuro, sem recompensa financeira, apenas o prazer da realização que, afinal, é o que importa na vida. Se bem que, hoje reconheço, a ditadura tinha seu lado digamos “bom”, que era obrigar a juventude a sair da alienação, pensar e reagir.
Desde 1967 eu tinha uma página inteira dominical de humor no jornal A Tribuna. Era mais deboche e provocação ao pessoal da ditadura. Tanto que fui em cana 12 vezes por causa de notas e alguns artigos. Antes de mais nada tinha a preocupação de apoiar qualquer manifestação de arte. Foi assim que, no dia 3 de dezembro de 1967, às 10 horas da manhã, competindo com o sol e a praia, consegui colocar no cinema Jandaia, cedido por Marcelo Abaurre, mais de 200 pessoas ao realizar o “I Festival de Cinema Amador Capixaba” (depois, por meio da mesma página, que se chamava Jornaleco, realizei um Festival de Teatro Amador Capixaba e cinco festivais de música). Dos nove filmes exibidos, sete tiveram a participação de Ramón Alvarado e outro era um documentário feito pelo pai dele, Luiz Gonzáles Batan, com imagens da cidade de Vitória de 1938. Outra curiosidade foi um documentário científico, a cores, mostrando a primeira operação de coração feita no Espírito Santo. O mais importante é que a moça operada estava presente e viu o filme pela primeira vez. No final, quando chamei Ramón ao palco para lhe entregar um troféu – que desejei fosse o primeiro dos muitos que viriam – ele foi aplaudido de pé. Vejam a lista dos nove filmes apresentados:
Indecisão: direção de Ramón Alvarado e fotografia de Rubens Freitas Rocha. Intérpretes: Cláudio Lachini, Miriam Calmon, Luís Manoel, Nalim, Zélia Stein (1966).
O Cristo e o Cristo: documentário de Ramón Alvarado sobre a Festa da Penha (1966).
Palladium: direção de Luiz Eduardo Lages e fotografia de Ramón Alvarado. Intérpretes: Elizabeth Galdino e Luiz Eduardo Lages (1966).
Automobilismo: documentário colorido de Rubens Freitas Rocha (1966).
Kaput: direção de Paulo Eduardo Torre e fotografia de Ramón Alvarado. Intérpretes: Rubens Azevedo, Marlene Simonetti e Ewerton Guimarães (1967).
Cirurgia do Coração no Espírito Santo: documentário científico colorido, de Ramón Alvarado (1967).
O pêndulo: direção e fotografia de Ramón Alvarado. Intérpretes: Zélia Stein e Carlos Chenier (1967).
Alto a la agression!: direção de Antônio Carlos Neves e fotografia de Ramón Alvarado. Intérpretes: Sílvia Renata Cohen, Milson Henriques, Alberto Cristóvão e Raimundo Oliveira (1967).
Vitória 1938: Documentário de Luiz Gonzáles Batan (pai de Ramón) mostrando aspectos da vitória no ano do título (1938).
Além desses nove, ainda fazem parte do I Ciclo Cinematográfico Capixaba (1965-69), a chamada “época de ouro” do nosso cinema amador, filmes de 16 mm, preto e branco, em celulose realizados de forma quase artesanal. São os seguintes:
A queda: direção de Paulo Eduardo Torre e fotografia de Ramón Alvarado. Intérpretes: Marlene Simonetti (aqui estou em dúvida se foi com Ewerton Guimarães ou Rubens Azevedo). (1966)
Boa sorte, palhaço!: direção de Antônio Carlos Neves e fotografia de Ramón Alvarado. Alguém me disse que o filme foi finalmente terminado, mas nunca perguntei a Toninho. Por isso, não sei os atores (1967)
Veia partida: direção de Antônio Carlos Neves e fotografia de Ramón Alvarado (prêmio de melhor fotografia no festival de Cinema do Jornal do Brasil/Mesbla, de 1968). Intérprete: Rubens Azevedo.
Primeira revolta: direção de Luiz Eduardo Lages. Não sei mais nada sobre esse filme. Quem me falou com entusiasmo sobre ele foi Paulo Eduardo Torre, mas nunca assisti nem sei o elenco.
Ponto e vírgula: direção de Luiz Tadeu Teixeira. Intérpretes: Luiz Tadeu Teixeira e Milson Henriques (1969).
Variações para um tema de Maiakovski: direção de Luiz Tadeu Teixeira. Também não assisti e desconheço a ficha técnica (1971).
São 15 filmes, em sua maioria, realizados por jovens entusiastas, num tempo em que a censura era cruel, numa cidade que não tem o vício da cultura (até hoje), motivados pela famosa frase de Glauber Rocha: “Fazer cinema é uma câmera na mão e uma (boa) idéia na cabeça”, e procurando desmistificar o cinema como uma indústria de diversão alienante.
No começo dos anos 70 Toninho Neves foi complementar seus estudos sobre cinema na União Soviética (ele havia completado um curso de cinema em Brasília), Paulo Torre Ramón e Rubens Azeredo (que nunca mais vi) foram para o Rio de Janeiro, e o ainda garoto Luiz Tadeu Teixeira virou editor do segundo caderno de A Gazeta, embora fosse o provável sucessor dos que foram embora, porque começou a filmar e a fazer teatro. Só que fizemos juntos peça Mordaça e ganhamos como prêmio, oferecido pela Fundação Cultural do Espírito Santo, cursos de teatro no Rio de Janeiro. Tadeu largou tudo e foi para o Rio, só voltando anos depois. Luiz Lages, não sei para onde foi. Da turma “antiga” só eu fiquei por aqui.
Aí, chegaram os anos 70. Como dinheiro é coisa que nunca tive, nem faço questão, nunca ousei dirigir filmes. Preferi fazer shows, peças de teatro com universitários, menos complicado e dispendioso. Continuei a cantar em coral, escrever e desenhar em jornal e visitar periodicamente – como convidado ou intimado – a Polícia Federal.
Apesar dessa última parte, que saudade daquele tempo!…
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